quarta-feira, 4 de maio de 2011

Cavalo azul royal

Penso entrar numa cápsula criadora quando entro no meu automável.
Lindo de um lindismo sem pintura no teto e principalmente, sem as coberturas internas das portas.
Posso ver-lhe as entranhas, seus mecanismos, parafusos e vidros.
As ideias me são generosas quando entro nesse espaço móvel.
Aprendo a escrever em todos as linguagens dentro dele.
Cantarolo melodias, balbucio palavras ritmadas, ponho-me a bater as mãos na direção encapada com uma borracha esfarelenta, mas produtora de um som grave e esperto, ou seja, vou vivendo.
Esses meses, sua lataria de tanque tem levado algumas pancadas, sofrido uns traumas e resistido bastante, como fosse sendo remodelada e reembelezada por elas.
Embaixo de chuva, numa autoestrada, um gol com os pneus carecas afrontou-lhe a traseira no seu lado direito.
Outra chuva e mais uma vez, um carro brilhantemente preto, com os pneus mais carecas ainda, tentou desviar dele, que estava parado no sinal vermelho, mas atingiu o royal embaixo do farol direito, que permaneceu intacto.
De resultado mesmo, apenas um mini amassado embaixo do acrílico rubro.
Outro dia, com meu filho na direção, ele recebeu seu último trauma barulhento.
Também o meu rebento estava com o corcel royal parado no sinal e uma senhora, do seu lado direito, não o viu, e rispidamente, quis entrar à esquerda.
A máquina criadora sofreu apenas um arranhão no parachoque frontal.
Nesses três casos, os outros veículos sofreram danos bastante visíveis e a cápsula da criação permaneceu apenas com seus discretos arranhões.
Arranhado, sem tinta, sem tapetes, sem a maçaneta da porta do motorista, mas ávido pela presença de alguém em seu recheio, para trocar umas palavrinhas, oferecer um som, agregar mais possibiidades àquelas que o senhor traz quando passeia a pé.
A máquina me traz, me leva e dentro dela sou capaz de organizar uns versos.
Fora dela, organizo mais, acrescento alguma coisa nervosa, um ruído mais histérico, uma sensação paciente e vou me oferecendo na medida que o meu coração e a minha vontade permitem.
Eu e o meu cavalo permitimos bastante.
Nosso trote vai marcando com borracha de pneu e sapatênis as folhas de celulosee, a atmosfera que nos cerca a todos, e essa, vai recebendo o perfume dessas trocas hiperrealistas.
Como cubistas, vamos tentando ver as coisas com múltiplas perspectivas aplicadas num único plano.
Contrastes analíticos e sintéticos.
O jardim recebeu a coroa orgãnica do seu pulso e as flores que hoje sugam suas particularidades, particulares também se tornam, na medida que não reconhecem mais, impressões idênticas às suas vizinhas